Pentes finos e suas (des)utilidades
Mesmo passando várias vezes o pente de metal de cerdas mais finas adquirido por trinta reis na farmácia do sr. Mauro que é daqueles farmacêuticos das antigas que examina os “pacientes” na saletinha de fundo da farmácia – mede pressão arterial, averigua garganta com palito de sorvete, enfia lanterna pontudinha com lupa nos ouvidos, puxa para baixo as pálpebras constatando a presença ou a falta de ferro nas veias, conclui o diagnóstico e passa receita do tratamento mais acertado para aquele quadro geral –, mesmo passando o pente de cerdas apertadíssimas desde a raiz nos cabelos da minha filha pós-banhados com vinagre de maçã morno e shampoo de deltametrina, não capturamos nenhum piolho e muito menos lêndeas dessa forma. O pente deslizava e saía ileso, sem nenhum pontinho branquinho ou pretinho pra contar história.
Fazia muito tempo que eu não tinha que lidar com esses bichos, talvez desde quando eu mesma tinha a idade da minha filha – entre os cinco e os seis anos – e eu nem me lembro bem da sensação, da coceira ou do trabalho de acabar com a infestação, só me lembro da minha mãe contando que eu e meus irmãos pegamos piolho ao mesmo tempo uma única vez na infância e a solução final foi cortar bem curtinho nossos cabelos. Na minha memória inventada, piolho é um bicho grande, que caminha rapidamente pelo couro cabeludo, que a gente abre uma mecha e o pega com os dedos, espreme e joga no chão e pisa pra ter certeza – tá mais pra carrapato, eu sei.
Tenho estado surpresa com a resiliência, a capacidade de camuflagem, a cor quase transparente e o tamanho ínfimo, a rapidez de desova e de procriação do dito cujo. Na minha memória inventada, era só passar um shampoo específico em uma lavagem, duas penteadas com o pente fino, e a partir daí prender sempre os cabelos num rabo ou coque para ir à escola e evitar reinfecção. Mas não, o caminho é longo e árduo.
Nos fios finíssimos de minha filha, o pente fino sai limpo, à luz fria de dentro de casa nada revela, e se não fosse a insistência dela de coçar a cabeça com as unhas das duas mãos como se fosse arrancar couro, eu teria fechado o diagnóstico como Toque induzido pela observação de experiências alheias.
Eu, aliás, quase fechei o diagnóstico nisso mesmo depois de ter seguido um pequeno protocolo do sr. Mauro da farmácia – quatro dias seguidos lavando os cabelos com o shampoo que cheira a remédio forte, pente fino depois de todas as lavadas, ingestão via oral de um comprimido que pega os parasitas todos.
Mas minha filha continuava querendo arrancar o couro. E eu começava a sentir também uma coceira insistente nos cabelos da minha nuca – lugar que menos passo a tinta para cobrir meus brancos – dizem que amônia mata os bichos. Plenos 42 anos pegando piolhos, pensei preconceituosamente.
Andou chovendo por dias, fora o frio. Era preciso lavar tudo, roupas de cama, edredons, fronhas, escovas de cabelo, colocar travesseiros ao sol que não vinha. Fui me virando como podia, secador de cabelos em nossas cabeças e nos colchões. Em uma noite com minha menina no colo, insisti na observação dos fios, com a ajuda da lanterna do celular finalmente eu encontrei uma espécie de ponto final de fonte tamanho 12 de cor marrom-claro se movendo pela pele do couro cabeludo. Inacreditável!
Depois fui aprendendo, no quintal, à luz do dia, dava pra ver melhor. Piolho mesmo eu só vi aquele pontinho daquela noite que consegui matar na unha, mas minha filha estava infestada de lêndeas. Uns ovinhos branco-transparentes pregados nos fios, parecendo contas de um minúsculo colar. Ali, sentadas no quintal, passei mais uma vez o pente fino e vi, realmente ele não servia de nada no caso de minha filha, passavam juntos pelas certas os fios e os ovos, amigados como se tivessem nascidos juntos. O serviço tinha que ser feito com os meus olhos e dedos mesmo e unhas – vasculhar, encontrar, agarrar e puxar do topo da cabeça até as pontas, e então esmagá-los, um a um.
Era um tempo e uma puxação de cabelo, Lila me xingando pedindo pra deixá-la em paz. Fiz chantagem emocional e falei que se ela deixasse eu tirar nove lêndeas por dia eu comprava um presentinho na cidade pra ela, algo simples que custasse menos de quinze reais. Às vezes eu não tenho paciência para ser emocionalmente madura. E assim temos sido, é sair de casa pra eu caçar os pontinhos pregados nos fios. Devagar eles têm sumido, e a coceira já nos deixou.
Parece mesmo que eu tô sempre caçando lêndea na vida, dobrando roupas, catando restos de comida do chão, enxotando gatos de cima dos travesseiros, tomando uma xícara de café atrás da outra, combinando comigo mesma que vou fazer um detox de 7 dias sem açúcar na dieta, mas esperando que esse dia comece depois da visita da vovó, depois das festas juninas, depois que a barra gigante de chocolate Milka com avelã que ganhei acabe.
Aliás, encarei de fazer o teste diagnóstico de autismo que minha antiga terapeuta havia recomendado. Fiz uma consulta com uma especialista e depois segui uma semana respondendo testes inúmeros. Eu não sei se eu consegui ser totalmente honesta em todas as minhas respostas, algumas situações pareciam descrever algo que eu um dia fui, mas aprendi a não ser mais. Talvez eu seja uma pessoa do espectro um tanto adaptada aos giros malucos de nossas rotinas. Não foi fácil – a adaptação e a camuflagem. Mas o fato é que o diagnóstico que recebi foi que apresento traços de autismo, TDAH-h e TAG. Fez muito sentido.
Esse tal de TAG é Transtorno de Ansiedade Generalizada.
A psicóloga me passou o laudo, e um receituário e um tratamento, que inclui terapias e remédios alopáticos – para diminuir a ansiedade principalmente. Fez muito sentido. Mas eu guardei tudo numa pasta da área de trabalho do computador, por ora, e ao invés de começar tomando remédios que aumentam a serotonina e diminuem a libido, penso em tentar incluir nos dias meditação, cortar o café e diminuir consideravelmente o açúcar. Agora só me falta uma desculpa boa para começar. Porque o álcool eu praticamente já cortei... quem sabe um dia eu vire monja.
No mais, tenho conseguido mover o corpo por algumas tardes em caminhadas na estradona de terra que me areja a mente inquieta, sempre na companhia dessa cachorrinha que me surgiu e que é o serhumaninho mais simples e feliz que eu conheci nos últimos anos, Daisy Jones.
(O resto, quando eu conseguir, eu conto).
É verdade esse bilhete? Desde quando fiquei literariado, fiquei desconfiado em excesso. 😆
Sempre muito precisa com as palavras, trazendo-nos imagens potentes e reflexivas!